Cena Três — A Perdida
13 de setembro de 2025 às 06:48
Noite profunda, apartamento. Alan está sentado à sua escrivaninha maciça, iluminada apenas por uma lâmpada de mesa. À sua frente – um volume de Shakespeare, mas ele não está a ler, olha pela janela para a Londres noturna, o rosto – uma máscara de profunda contemplação. O ensaio da noite não o larga. Ele tem culpa. Permitiu que a energia da personagem, o seu próprio envolvimento na interpretação, superasse o cálculo profissional e a distância. Usou aquela energia jovem e inexperiente de Anna, o seu arrebatamento trémulo perante a mestria, para intensificar a cena. E foi longe de mais. A fronteira desvaneceu-se. E ele, um actor experiente, permitiu que isso acontecesse. O pensamento do seu desnorte, do seu possível embaraço ou, pior, de uma interpretação errada das suas ações, corrói-o.
A vibração do telemóvel na mesa rasga o silêncio. Olhou para o ecrã. Um número desconhecido? Não, ele reconhece o nome – é o número de telemóvel que deu ao elenco para emergências. Anna. 2:19 da manhã. A ansiedade substitui instantaneamente a introspeção. O que aconteceu? Abre a mensagem. Lê. Primeiro rapidamente, depois devagar, mais uma vez. Cada linha é como um soco.
"Obrigado pela lição. — Profissional.
O senhor é incomparável. Um talento tão grande. Estou em completo êxtase. — Lisonja de uma aprendiz, mas soa... intensa.
E aquele beijo... foi o beijo mais maravilhoso, mais real da minha vida."
A última frase fá-lo recuar bruscamente na cadeira. Fecha os olhos, mas não vê a escuridão – vê o rosto de Anna no palco, inclinado para trás, os olhos muito abertos, cheios de um espanto não-actuado e... de algo mais. Vê-se a si mesmo, a perder o controlo por uma fração de segundo. "O mais real..." Meu Deus. Isto é um desastre. Ele não quis isto. Nunca. Mas a ansiedade é mais forte. Porque é que a rapariga está a escrever isto às 2 da manhã? O tom da mensagem – agitado, quase histérico. Não parece uma gratidão sóbria. Onde está ela? O que se passa?
Os dedos já estão a marcar o número dela. A chamada vai para o gravador. Desliga. Tenta outra vez. Gravador novamente. Um medo gelado aperta-lhe o coração. O seu erro profissional pode tê-la levado a fazer alguma loucura. Levanta-se de um salto, apanha as chaves do carro. Ele conhecia a zona à volta do teatro. Os bares familiares... Os parques... Onde poderia ter ido uma rapariga jovem, perturbada, possivelmente embriagada?
Sai de casa. A noite está fria. O rosto à luz dos candeeiros de rua está como pedra, mas nos olhos – uma desorientação incomum nele e um agudo sentido de responsabilidade. Tem de a encontrar. Ter a certeza de que está tudo bem. E depois... depois terão de falar. Falar clara e firmemente sobre fronteiras, sobre a profissão, sobre o perigoso abismo para o qual ambos quase deram um passo. Mas primeiro – encontrar Anna. Ele entra no carro, o motor rosna na noite, como um reflexo da sua turbulência interior. A mensagem de Anna arde na sua memória, como uma acusação e como um sinal de distress, ao qual ele é obrigado a responder. Afinal, usou a sua juventude, admiração, inexperiência, para tornar a cena incendiária. E funcionou demasiado bem. Alan sentia-se culpado e responsável. O seu telemóvel tocou. Um número desconhecido. O coração deu um salto. Anna?
— Rickman, — respondeu abruptamente, na esperança de ouvir a sua voz.
— Senhor Rickman? É o Simon, o empregado de bar do 'Ferradura'. Ligou acerca da Anna? — a voz soava preocupada. — Ela esteve aqui, bebeu muito. Um tipo qualquer importunou-a, levou-a para o carro. Ela libertou-se, fugiu na direção do parque. Parecia terrivelmente assustada. Eu corri atrás, mas perdi-a no escuro. Eu... estou preocupado.
Uma onda gelada de medo inundou-o. Os seus piores receios confirmaram-se. O erro profissional, a perda de controlo no palco, levaram a isto. A rapariga estava em perigo, assustada, bêbada, por sua causa.
— O parque perto do teatro? Obrigado, Simon. Já vou a caminho. — deu uma volta em seco com o carro, o rosto à luz do painel estava como pedra, mas os olhos ardiam de determinação. Ele iria encontrá-la. Tinha de a encontrar.
Anna, encolhida debaixo da árvore, ouviu passos no gravilha. Rápidos, decididos. Encostou-se ao tronco, prendendo a respiração. Seria ele? Aquele homem?
— Anna? — soou uma voz. Baixa, aveludada, cortando a noite. Cheia de ansiedade, mas incrivelmente firme. — Anna, sou eu, Alan. Estás aqui?
Ela não conseguiu responder. Um nó na garganta. As lágrimas jorraram por si mesmas. Ouviu os passos a aproximarem-se. O feixe da lanterna de Alan iluminou uma figura – encolhida, trémula, com o rosto marcado pelas lágrimas, a roupa suja de terra e amarrotada. Ele parou a poucos passos de distância. O seu rosto, no reflexo da luz, estava pálido, os olhos – enormes, cheios de alívio, de horror pelo que via e... de algo profundo, sombrio, que ela não conseguiu compreender. Alan viu o estado da rapariga – os sinais de luta, a embriaguez, um completo esgotamento emocional. Viu as consequências da sua cena, da perda de controlo.
— Anna... — a voz dele quebrou para um sussurro, não tinha o habitual aço, apenas dor e uma questão silenciosa. Tirou o sobretudo, deu dois passos rápidos e envolveu-a com ele. Não apenas pôs – embrulhou-a, como uma preciosidade, como algo frágil e indefeso. As mãos, por um momento, apertaram o casaco com mais força contra os ombros frágeis, transmitindo calor e força. — Estás gelada. Meu Deus, o que te aconteceu? — A pergunta era retórica. Ele sabia.
Alan ajudou-a a levantar, a mão sob o seu cotovelo era um suporte firme.
— O carro está aqui. Levo-te para casa. — Nada de discussões, o tom apenas permitia aquiescência, levou-a, apoiando-a, sentindo-a tremer debaixo do casaco. O seu toque era cuidadoso, mas não havia nele qualquer vestígio da paixão que ardera no palco. Havia preocupação, responsabilidade e... culpa.
Dentro do carro, no silêncio apenas quebrado pelo ruído do motor, ele falou, olhando fixamente para a estrada, as mãos com os nós dos dedos brancos a apertarem o volante:
— A mensagem... Eu li-a. — A voz era uniforme, mas ela sentiu o esforço que isso lhe custou. — Anna, o que aconteceu entre nós no palco... foi trabalho. O meu trabalho – fazer o público acreditar. E eu... mergulhei demasiado fundo na personagem hoje. Demasiado fundo. E usei a tua sinceridade, a tua entrega. Por isso, tenho culpa perante ti. Perdoa-me. Ultrapassei a fronteira.
Ela permaneceu em silêncio, engolindo as lágrimas, o sonho a desfazer-se. Mas nas suas palavras não havia frieza. Havia amargura, arrependimento e... algo mais? Tensão? Luta?
— És jovem, incrivelmente talentosa, — continuou, a voz tornou-se ligeiramente mais suave. — Um fogo assim, raro de se encontrar. Mas esse fogo... pode queimar. O nosso mundo, Anna... é construído sobre ilusões. E a fronteira entre o papel e a vida, entre a admiração e... algo mais – é muito ténue e muito perigosa. Especialmente quando... — Calou-se, virou o volante bruscamente. — Especialmente quando a faísca é real.
Estas últimas palavras pairaram no ar, pesadas e cheias de significado. "Quando a faísca é real". Ele admitiu? Admitiu que algo foi real? Não apenas interpretação?
Parou o carro em frente à sua modesta casa. Saiu, abriu-lhe a porta. Ajudou-a a sair, ainda enrolada no seu sobretudo. Ambos ficaram de pé junto ao portão. A noite estava silenciosa. O homem olhou para o seu rosto, que à luz da lua parecia talhado em pedra, mas nos olhos dele fervia uma tempestade – responsabilidade, culpa, ansiedade, e algo profundamente enterrado que ele não permitia vir à superfície.
— Amanhã, — disse baixinho, quase sem som. — Vem ao teatro. Temos de falar. Sobre tudo. Sobre fronteiras. Sobre perigos. E... sobre essa faísca. — A sua mão levantou-se involuntariamente, como se quisesse tocar-lhe na face, limpar um vestígio de terra ou uma lágrima. Mas parou a um centímetro da sua pele. A mão, trémula, baixou. A barreira física permaneceu intocada. — Entra. Descansa. Estás em segurança, Anna.
Alan esperou até a rapariga entrar em casa, até a porta se fechar. Só então entrou no carro. Anna, encostada à porta, ainda sentia o calor do sobretudo dele, o cheiro da sua fragrância. As palavras "a faísca é real" ardiam na sua memória mais do que qualquer vinho. Ele não lhe deu o que ela desejava fisicamente. Mas não violou as fronteiras. Admitiu a ligação. Admitiu a força daquilo que irrompera entre eles, mesmo que de forma incontrolável e perigosa. E nessa admissão, nessa luta não verbal dentro dele, nessa complexidade, havia esperança. Esperança de que a sua história – cheia de drama, segredos e atração irresistível – estava apenas a começar. Que seria incrivelmente difícil, mas talvez tão incrivelmente bela como aquele beijo que a enlouquecera.