Cena Quatro — O Canto do Cisne
13 de setembro de 2025 às 07:00
Manhã, teatro. A luz do sol entrava pelas janelas altas, as partículas de poeira dançavam nos raios. Anna entrou, como sempre entrava – com leveza, com um sorriso, irradiando aquela energia jovem que carregava todos à sua volta. Vestia leggings de treino simples e uma blusa larga, o cabelo preso num rabo de cavalo despreocupado. Perfeita, fresca, radiante. Nenhum vestígio da noite anterior, nenhuma sugestão de lágrimas, medo ou loucura embriagada. Presenteou o assistente de realização com um sorriso, aliviou a tensão na sala de maquilhagem com uma piada, respondeu com facilidade à pergunta de um estagiário jovem sobre a motivação da personagem. Anna era a "estrelinha", pequena, mas ofuscantemente brilhante. E todos a olhavam com adoração.
Alan Rickman estava junto à mesa do realizador, a rever notas. Sentiu a sua presença antes de a ver – como um sismógrafo sente um tremor distante. Ergueu o olhar. E... ficou pasmado. "Como é que ela pode ter este aspeto? Depois daquela SMS? Depois daquela figura trémula e chorosa no parque?" Esperava constrangimento, evitar o olhar, tensão. E não esta... serenidade solar.
Anna reparou nele. Uma sombra ligeira passou-lhe pelos olhos – tão depressa que se podia ter confundido com o jogo de luz. Depois – um sorriso deslumbrante, sincero e caloroso.
– Bom dia, Senhor Rickman! – a voz soou como um sino, aproximou-se dele, segurando o sobretudo cuidadosamente dobrado. – Muito obrigada, mais uma vez. Pela... preocupação, ontem. E pelo sobretudo. Aqueceu-me muito. – estendeu-lho.
Alan pegou no sobretudo. Os seus dedos tocaram-se por um momento. Um instante. Uma fração de segundo. Mas para ele foi como um choque elétrico. Ele manteve a mão lá, instintivamente, quase inconscientemente, sentindo o calor da sua pele sob as pontas dos dedos. E foi então... que a máscara vacilou.
Anna inspirou bruscamente. Um som leve, quase impercetível, como se lhe tivessem cortado a respiração. Uma cor – brilhante, não-actuada – inundou-lhe as faces, o pescoço, chegou à linha do decote. Ela desviou o olhar, mas não imediatamente. Os olhos – aqueles olhos enormes e expressivos – por um momento deslizaram até aos seus lábios. Rápido, como um pássaro assustado, mas ele viu. Captou aquele olhar furtivo, cheio de uma saudade não dita, de memória, de fogo. Depois, baixou as pálpebras bruscamente, como se se tivesse queimado. A mão, há pouco tão confiante, tremeu ligeiramente ao libertar o sobretudo.
A rapariga recompôs-se instantaneamente. Ergueu a cabeça, sorriu novamente. Mas era agora um sorriso diferente. Forçado. Com esforço. Os olhos brilhavam de forma antinatural – não de alegria, mas de emoções contidas. Como se tivesse absorvido toda aquela torrente súbita de sentimentos, todo aquele tremor, e os tivesse comprimido num autocontrolo gelado.
– Desculpe, eu... vou aquecer antes da cena, – disse, um pouco contida, mas ainda assim estável, e virou-se para sair.
Alan ficou parado, a apertar o seu sobretudo nas mãos. Sentia o calor dela no tecido. Vira aquele rubor, aquele tremor, aquele olhar para os seus lábios.
– "Está a representar?" – passou-lhe pela cabeça. – "Mas aquele rubor... aquela respiração... Aquele olhar... Isso não é representação. É demasiado... fisiológico. Demasiado verdadeiro."
O seu coração bateu mais depressa. Lembrou-se da sua SMS: "o beijo mais real, mais ardente..." E agora, recordando o seu olhar desviado, aquele sorriso forçado, ele acreditou. Acreditou na força daquilo que irrompera entre eles no palco. E essa perceção foi avassaladora. E perigosa.
Nesse preciso momento, quando o silêncio constrangedor entre eles começou a ganhar uma densidade física, um grupo de jovens atores do elenco secundário aproximou-se de Anna – barulhento, alegre, irradiando despreocupação.
– Ei, Anna! A nossa estrelinha! – gritou um rapaz alto com uma guitarra às costas – Estiveste simplesmente incrível hoje no aquecimento!
– Exactamente! – apoiou uma rapariga ruiva. – Precisamos da tua voz! Vamos todos ao "Microfone de Ouro"! Maratona de karaoke depois do ensaio! Sem desculpas! Tens de cantar algo épico!
Cercaram Anna, a rir, a agarrar-lhe as mãos. A rapariga olhou para Rickman, e no seu olhar brilhou algo – alívio? Arrependimento? Uma tábua de salvação? – e ligou novamente o seu modo "solar".
– Karaoke? Eu alinho! – riu-se, e essa gargalhada soava quase natural, dissolvendo-se na alegria geral – Vou desafinar que é uma beleza! – ria-se abraçando as amigas pelo pescoço de cada lado.
A juventude afastou-se com um murmúrio alegre, deixando Alan Rickman sozinho no meio da sala de ensaios. Ele observou-os a afastarem-se. Para a sua caminhada leve, para o balanço do rabo de cavalo, para a forma como ela se virou mais uma vez, lançando um olhar rápido e ilegível por cima do ombro – já não para os seus lábios, mas diretamente nos seus olhos. Um olhar em que se misturavam desafio e vulnerabilidade, e a sensação de algo... inacabado.
Alan levou o sobretudo lentamente ao rosto, fingindo ajustar o colarinho. Inalou.
Profundamente. O cheiro do pó do palco, da madeira velha... e um traço leve, mas distinto, do seu perfume – algo leve, floral, como flores de cerejeira. O cheiro da noite passada, do pânico...
As jovens gargalhadas de Anna e dos seus amigos desvaneciam-se no corredor. Alan baixou o sobretudo. Nos seus olhos normalmente impenetráveis, uma tempestade rugia. Ela estava a representar. Brilhantemente. Mas ele sabia. Sabia que por baixo daquela representação havia um oceano em fúria. Sabia daquela faísca que os tinha chamuscado a ambos. E sabia que a sua conversa, adiada no dia anterior, agora pairava entre eles como uma granada por explodir. Ignorá-la era impossível. Mas abordá-la... era mais perigoso do que nunca. Virou-se para a mesa, os seus dedos apertaram novamente as páginas do guião, mas ele não via o texto, via olhos castanho-claros, o seu rubor, e sentia nas pontas dos dedos o eco de um toque tímido. Como fundo, soava o eco despreocupado dos jovens talentos: "Karaoke! Karaoke!" – uma paródia miserável da música real que soava entre eles. Tão errada. Ele era um homem nobre e maduro e ela, uma actriz muito jovem e promissora sob sua tutela.
No bar, o grupo instalou-se num lounge VIP, eram pelo menos uma dúzia. A própria noite de karaoke transformara-se numa festa turbulenta. Anna, como um pequeno sol no centro de um pequeno sistema solar de jovens actores, brilhava. Cantou com dramatismo exagerado velhos sucessos, riu mais alto que todos, dançou com uma descontração que beirava o desespero. O vinho corria como água, e ela não recusava. Cada gole, cada riso, cada olhar para o estagiário simpático chamado Jamie, de 25 anos, rosto aberto, sorriso cativante, claramente encantado com Anna desde o primeiro dia, eram uma tentativa de afogar o fogo que ainda ardia dentro dela depois Daquele beijo, depois Daquele olhar.
Um turbilhão de luzes coloridas cortava a penumbra fumarenta do local, onde os sons de champanhe, risos e notas desafinadas se fundiam num único zumbido festivo. Anna estava junto ao balcão, os dedos enrolados around de uma taça com algo doce e espumante, mas os seus pensamentos estavam longe — no teatro, onde horas antes os seus dedos tinham quase tocado a sua palma ao passar o sobretudo. Aquele toque momentâneo ainda ardia na sua pele. A rapariga bebia sem sentir a embriaguez. Soou uma melodia em sintonia com o estado do seu coração.
Notas graves e prolongadas de um violoncelo, como se extraídas da própria profundidade da noite. Uma batida pulsante, quase a marcar uma dor invisível, transformando o corpo em fendas.
Primeiro, apenas um balanço suave ao ritmo, um ligeiro movimento das ancas, como se despertando o corpo do entorpecimento. Os ombros recuaram, o pescoço esticou-se, como o de um cisne. Os braços levantaram-se suavemente, como asas, prontos para voar ou para abraçar um parceiro invisível.
Na sua cabeça — Ele. O Sr. Inatingível.
As suas mãos a deslizar pela sua cintura, a guiá-la. O seu peito pressionado contra as suas costas, firme e seguro. A sua respiração no seu pescoço quando ele se inclina para sussurrar algo que acelera o seu coração.
Ela virou-se, deu um passo em frente — e subitamente mudou por completo. Já não dançava para a plateia, dançava para Ele, para Alan.
Movimentos — sensuais, fluidos, mas com uma força subjacente. As ancas balançavam ao ritmo, como ondas, os ombros arqueavam, os braços estendiam-se para um parceiro invisível, ora puxando, ora afastando.
Sentia os seus dedos a entrelaçarem-se no seu cabelo. Os seus lábios a tocarem no seu ombro. O seu corpo a pressionar o dela numa volta lenta e sensual. Cada movimento era uma súplica, uma confissão, uma admissão que não podia ser dita em voz alta. Dançava como se a sua vida dependesse disso. Como se, se parasse, o mundo desabasse.
O bar ruidoso calou-se. Até o empregado de bar parou de tilintar copos. Jamie estava sentado, a apertar a cerveja que há muito deixara de beber. Ele nunca a vira assim. Não apenas bonita, não apenas desejável, mas completamente diferente — como se dançasse não ali, mas noutro lugar, no seu próprio mundo, onde não havia mais ninguém. E naquele momento Jamie percebeu: Estava loucamente apaixonado.
A música calou-se suavemente. Anna parou, o peito a arfar, os lábios entreabertos. Ela acordou. Regressou ao bar ruidoso, aos gritos amigos, aos aplausos estrondosos. Jamie levantou-se, batendo palmas mais alto que todos, com um olhar extasiado mas um pouco perdido. Anna sorriu — constrangida, como se tivesse sido apanhada em flagrante. Mas por dentro — ardia. Porque ela sabia: Aquela dança não fora para eles. Aquela dança fora para Ele. Para aquele que não estava ali. Para aquele que, possivelmente, nunca a veria. Mas mesmo assim ela dançara. Porque de outra forma — não podia.
Anna, sorrindo sem jeito, puxou uma madeixa de cabelo para trás da orelha e apressou-se até à casa de banho, ficando sozinha em frente ao espelho. Apoiou as palmas das mãos na borda do lavatório e olhou para o reflexo cansado com olhos calmos. Passou um dedo pelo vidro, como se apagasse vestígios de lágrimas que não existiam.
— Estás a ver? — sussurrou para o vazio. — Só para ti...
E algures longe, no seu escritório, a reler o guião, Rickman estremeceu subitamente. Como se tivesse ouvido. Como se tivesse sentido. Aproximou-se da janela, olhando para a cidade noturna. Ele não vira aquela dança. Mas algures bem no fundo — sentira. E a sua mão esticou-se para o telemóvel... Mas nunca marcou o número, acariciando os botões com o polegar, batendo com ele na palma da mão e sorrindo levemente, com um ar nervoso, antes de o pousar na mesa e desligar a lâmpada.
No clube de karaoke, Jamie não se afastou dela. Apanhava cada uma das suas piadas, cantava com ela, oferecia-lhe bebidas. A sua admiração era pura, ingénua e muito persistente. No final da noite, quando Anna, a balançar ligeiramente do vinho e do cansaço, saiu para apanhar ar na minúscula varanda do bar, ele seguiu-a. A noite estava fresca, o ruído da cidade abafado.
— Anna... — começou ele, a voz a tremer ligeiramente da mistura de vinho e determinação. — Tu... és simplesmente incrível. Hoje, sempre. Eu... eu fico louco ao olhar para ti. Se calhar... que tal experimentarmos? Namorar? Pelo menos sair? Para tomar café? Para ver um espetáculo? Para onde tu quiseres!
Anna olhava para as luzes da cidade, mas via outra coisa: um perfil severo na penumbra do palco, dedos a demorarem-se na sua mão, uma voz aveludada a dizer: "Especialmente quando a faísca é real". A dor no peito era aguda. Esquecer. Precisava de esquecer. Era impossível. Doía. Ela virou-se. Os seus olhos brilhavam com sinceridade e esperança. Jamie estava ali, real, quente. Queria-a a ela, e não o fantasma de Helen. Num impulso de desespero, culpa e desejo de abafar o sentimento insuportável pela pessoa inatingível, ela sorriu – brilhantemente, um pouco triste.
— Jamie... — ela pousou a mão no seu antebraço. — És tão querido. E... sim. Vamos experimentar. Café – é uma ótima ideia.
O rosto do rapaz iluminou-se de êxtase. Agarrou-lhe a mão, quase a saltar de felicidade.
— A sério? Espetáculo! Amanhã? Depois do ensaio da manhã? — Anna anuiu, sentindo um estranho vazio sob a explosão da sua alegria. Fuga. Era apenas fuga.